quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Brecha

Há uma brecha, uma falta ingrata    
Um vazio, uma carência, ausência
Uma vaga amarga.

Pulso em teu pulso, podes me sentir?
Corro em tuas veias, podes me notar?
Tens parte de mim em ti
Parte que arrancastes e levastes pra lá
                                           
                                                             Anne Andrade 

Fora de cena

Não faça isso com meu dia
Não me faça chorar
Não devore minha alegria
Lágrimas podem virar mar

Não me olhe desse jeito
Sua contundência me fura
Atravessa meu peito
E me afoga em amargura
 [...]
Não, não sinta dó
Deixe a dor ser bem sofrida
Da garganta tiro o nó
Do peito, a ferida
Dos olhos, o oceano
E da certeza, o engano

Não carece de plateia
Para assistir a minha dor,
Para viver minha miséria
Não preciso ser ator.

                                Anne Andrade

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Receita viva



A arte de viver se assemelha a uma receita, só que de algo nunca feito antes. Irracional tentar escrever essa receita sem ter ideia prática. Mas existem os que querem escrever primeiro tal receita num papel, supor ingredientes, quantidades e modo de preparo; isso acontece de forma planejada, e ao mesmo tempo fria, seca, calculada, pensada, sistematizada e baseada em cálculos vãos de mentes ingênuas que ainda não vivem, mas, projetam. Isso pode levar dias, anos... Eis que é chegado o grande momento de "por a mão na massa", viver, e tentar fazer tal receita. Mas quando se vive, tudo é diferente, há casos e acasos diferentes, circunstâncias não planejadas, imprevistos, sentimentos, coisas inexplicáveis, fermentos inesperados, proporções não estipuladas, carência não pensada, por que a vida é verde, a vida é viva, e não cabe num papel, e não obedece a uma receita pré-estabelecida. Então, aquele que vive, rasga a teoria da receita, e aprende que os ingredientes são escolhidos dia após dia e uma nova receita vai sendo feita, moldada pelas circunstâncias. E que o resultado final, é surpresa, que só descobrimos ao final do preparo.
Anne Andrade

sábado, 7 de agosto de 2010

Fingidor que finge a dor

Já que poeta é fingidor, continuemos, pois, a fingir, deixa estar, que se não é, passa a ser enquanto escrevemos, como observou Lispector. Deixe que eu mostre uma dor não necessariamente minha, fingir dor que dói sem doer. Que mal tem em dizer o que ainda não sente? Antes assim, que tornar a pele transparente, fazer do corpo vitrine, expor as chagas da carne, e ficar suscetível a todo e qualquer julgo escarnecedor. Deixe que eu faço uma dor bonita. Antes assim, que ser tomado pela emoção do que sentimos, mas não sabemos bem, e se expor ao ridículo na tentativa vã de querer dizer norte e, por fim, falar sul. Poeta escreve o que pensa, o que imagina, o que está na cabeça, e não no coração. O que sente não está nos versos, está entre os versos, sobre os versos, sob os versos, metaforizado em cada palavra, oculto nas rimas, camuflado na forma, não verás explícito nos versos os sentimentos de um poeta, pois não cabem nos versos, estão nos versos, sem que versos sejam. Nos versos, encontrarás o fingimento da dor do fingidor. 
                                                                        Anne Andrade